SUMÁRIO DA COLETÂNEA




TEORIA DA SAÚDE
Estudos sobre conceitos de
Saúde, Doença, Cuidado, Risco (e correlatos)
*

Naomar de Almeida Filho
Com Moacyr Scliar, Jairnilson Paim, Denise Coutinho, Roberto Passos Nogueira, Moysés Goldbaum, José Ricardo Ayres, Dina Czeresnia, Lígia Vieira da Silva, Vládia Jucá, Maria Fernanda Peres, Maria Thereza Coelho, Marcelo Castellanos, Luiz Augusto Vasconcelos, Luis Eugênio de Souza



Salvador, Bahia
Novembro de 2011


SUMÁRIO
    I.     Prólogo
Naomar de Almeida Filho
 II.     Saúde, Doença e Conceitos Correlatos: Excurso Etimológico e Proposta de Demarcação Semântica
Naomar de Almeida Filho, Denise Coutinho, Vládia Jucá
III.     Uma História do Conceito de Saúde
(Com Moacyr Scliar)
IV.     Saúde Como Campo de Saberes e Práticas e Como Paradigma
Naomar de Almeida Filho, Jairnilson Paim
 V.     Saúde como Problema: Carências, Necessidades, Demandas e Valores
(Com Jairnilson Paim)
VI.     Modelos Biomédicos de Doença
Naomar de Almeida Filho, Moisés Goldbaum
VII.     A Teoria Naturalista de Saúde-Doença de Boorse
Naomar de Almeida Filho, Vládia Jucá
VIII.     Modelos Sócio-Antropológicos de Saúde-Doença-Cuidado
Naomar de Almeida Filho, Maria Fernanda Peres, Maria Thereza Coelho
IX.     Atos de Saúde: Atenção, Cuidado, Cura (e Correlatos)
Vládia Jucá, Naomar de Almeida Filho
  X.     Conceitos de Cuidado em Saúde
 (Com José Ricardo Ayres)
XI.     Saúde como Virtude: para além da Nêmesis Médica
(
Com Roberto Passos Nogueira)
XII.     Eqüidade em Saúde: Análise Crítica de Conceitos
Naomar de Almeida Filho, Lígia Vieira da Silva, Luiz Eugênio de Souza
XIII.     Conceitos de Prevenção e Promoção da Saúde: Atualidade de A. S. Arouca (Com Jairnilson Paim e Dina Czeresnia)
XIV.     Susceptibilidades, Vulnerabilidades e Fragilidades: Contrapontos? Atualidade de Ricardo Bruno Gonçalves
(
Naomar de Almeida Filho, Marcelo Castellanos, José Ricardo Ayres)
XV.     Conceito de Saúde: Ponto-Cego da Epidemiologia? Atualidade de Guilherme Rodrigues da Silva
Naomar de Almeida Filho
XVI.     Bases Filosóficas dos Conceitos de Doença e Risco: Contingência, Causalidade e Predição
Denise Coutinho, Naomar de Almeida Filho
XVII.     Futuros Possíveis para o Conceito de Risco
Naomar de Almeida Filho, Denise Coutinho
XVIII.     Epistemologia da Saúde: do Problema de Kant-Gadamer à Teoria dos Modos de Saúde
Naomar de Almeida Filho
XIX.     Holopatogênese (Esboço de uma Teoria Restrita de Saúde-Doença)
Naomar de Almeida Filho
XX.     Saúde*Doença*Cuidado Como Objeto Complexo: Elementos para uma Teoria Geral da Saúde
Naomar de Almeida Filho
XXI.     Epílogo
Naomar de Almeida Filho
Referências Bibliográficas










But what is health? It is, of course, not directly observable, but is inferred. Health is, first of all, a conceptual construct that we develop to encompass a range of different classes of phenomena... in three levels of reality: the physiological, the perceptual, and the behavioral.

Mas o que é saúde? Não se trata de algo, é claro, diretamente observável. Saúde é, em primeiro lugar, um construto conceitual que desenvolvemos para enquadrar uma amplitude de diferentes classes de fenômenos... em três níveis de realidade: o fisiológico, o perceptual e o comportamental.[1]
(Levine, 1995:8)

CAPÍTULO I
PRÓLOGO

Naomar de Almeida Filho


Quando a Clínica ainda se orgulhava de ser a arte de curar e a Epidemiologia era apenas uma das ciências básicas da Medicina Preventiva, a vida parecia simples e fácil. Havia a segurança do diagnóstico, da doença e da causalidade, da bioestatística e do conceito de risco, da terapêutica precoce e da profilaxia. Os objetos de conhecimento e de intervenção apresentavam-se como alvos grandes e lentos, escandalosamente visíveis, definidos com precisão, complacentes, esperando alguma ação preventiva. Sabiam todos que, mais cedo ou mais tarde, pelo conhecimento dos ciclos evolutivos das doenças, suas causas e fatores de risco, tais objetos seriam validados pela ciência epidemiológica. Dela, exigia-se apenas a produção de um saber complementar ao saber clínico, capaz de proteger corpos, populações e ambientes dos vetores, dos agentes mórbidos e dos fatores de risco, erradicando-os ou controlando-os, desse modo prevenindo a ocorrência de doenças e suas complicações.
Em 1946, talvez buscando alívio para o zeitgeist depressivo do pós-guerra, a Organização Mundial da Saúde (Callahan, 1973) reinventou o Nirvana e chamou-o de ‘saúde’.
Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença ou incapacidade.
À primeira vista, poderíamos não dar muita atenção a esta intrigante consigna que teve o duvidoso mérito de alimentar, em todo o mundo que se crê civilizado, um novo misticismo sanitário. Porém não acredito que se possa fingir indiferença perante o poder simbólico das ideologias, principalmente quando catalisam tanto desejo e energia e criam burocracias tão poderosas quanto eficientes no que se refere à própria reprodução. Assim, os competentes burocratas rapidamente se mobilizaram para saber do que se tratava e como se poderia obter aquele “todo completo” sobre o qual somente se informava que não é o “nada da doença”.
Certamente como efeito desse processo, no contexto sanitário dos países industrializados, emergiu um movimento ideológico, com características ecumênicas, denominado Promoção da Saúde.3-5 Promoção, os sanitaristas de carreira, melhor que ninguém, sempre souberam do que se trata. Definir o que é saúde, entretanto, parecia bastante mais difícil. Os novos evangelistas então convocaram publicitários, artistas gráficos, gurus e até mesmo alguns pesquisadores, que contribuiram com logotipos, esquemas e desenhos interessantes, ampliando cada vez mais o “todo completo”, incluindo novas modalidades de bem-estar, sempre a garantir que isso nada tem a ver com doença. Produziram-se truísmos e tautologias das mais variadas formas, como por exemplo o caso extremo apresentado na Figura 1, onde Saúde aparece como uma mandala totalizante das virtudes e valores humanos.
Dentro desse espírito quase transcendental e piedoso, a OMS escolheu um lugar remoto, bem espiritualizado, chamado Alma Ata, para fazer o lançamento de sua campanha pela atenção primária à saúde (OMS/UNICEF, 1978), estratégia que supostamente cumpriria a promessa de universalização da saúde. Países pós-modernos como Canadá (Lalonde, 1974), Holanda (WRR Netherlands, 1997) e Brasil (Paim, 2003) se engajaram com entusiasmo, terminando por decretar, nas respectivas constituições, que a saúde é direito de todos e dever do Estado.
Illustration of the five dimensions of health: 
 emotional, social, physical, intellectual and spiritual.
Figura 1 – Dimensões da Saúde (Fonte: WHO, 1993)
Resultado: hordas de sanitaristas, ex-preventivistas, funcionários internacionais, nacionais, regionais e locais, planejadores e gestores, ex-seminaristas, candidatos aos cargos dos funcionários internacionais, nacionais, regionais e locais, militantes, ativistas, enganados e desenganados, iludidos e desiludidos, todos querem saber o que é saúde.
A sociedade literalmente bate à porta das instituições acadêmicas e científicas que supostamente deveriam saber o que é, como se mede e como se promove essa tal de “saúde”. Traduzindo em linguagem apropriada, isso significa enorme demanda epistemológica resultante de ampla pressão social, política, institucional e ideológica. Para atendê-la de modo sério e responsável, o saber preventivista (Arouca, 1975) sobre as causas das doenças, que insiste em manter-se bio-médico-clínico em forma e conteúdo, pouco teria a contribuir.
Mas aí surge um grande problema, provocado por essa justa demanda social e política. Por causa do seu subdesenvolvimento epistemológico e conceitual, a Epidemiologia, ungida como a “ciência básica da Saúde Pública”, não tem sido capaz de produzir uma referência teórica eficaz sobre o objeto saúde. Tenho uma hipótese sobre a questão. Isso ocorre simplesmente porque o conceito de ‘saúde’ constitui um dos pontos cegos paradigmáticos da ciência epidemiológica. Em outra oportunidade (Almeida Filho, 1997), assinalei que, além das anomalias kuhnianas, os paradigmas científicos também apresentariam pontos cegos como signos de crise. Com a expressão “ponto-cego”, refiro-me a problemas ou questões que os próprios paradigmas, consubstanciados pelos agentes históricos engajados na prática institucional da ciência, não permitem “ver” ou sequer toleram que sejam vistos.
É certo que esta lacuna não é exclusiva da Epidemiologia. Em todas as disciplinas que constituem o chamado campo da saúde, noto um flagrante desinteresse em construir conceitualmente o objeto Saúde. Em contraste, pode-se facilmente constatar razoável concentração de esforços no sentido de produzir modelos biomédicos de patologia (Temkin, 1963; Murphy, 1965; Berlinguer, 1988; Pérez-Tamayo, 1988; Abed, 1993; Kauffman, 1997; Humber & Almeder, 1997), com forte inspiração mecanicista ou, no máximo, sistêmica, que, ao enfatizar os níveis de análise individual e subindividual, terminam por reduzir o alcance das suas contribuições. Abordagens dessa ordem mostram-se incapazes de fazer justiça à complexidade dos processos concretos relativos à vida, saúde, aflição, sofrimento, dor, doença, cuidado, cura e morte que ocorrem em agregados humanos históricos.
Para piorar (ou melhorar, depende do ponto de vista), num certo momento prometeram saúde para todos... no ano 2000. O ano 2000 chegou, passou e, além de alguma tensão provocada pelo boato do bug do milênio, ninguém se sentiu mais sadio naquele ano. Hoje, nem se fala mais no assunto. Mesmo assim – ou melhor, por isso mesmo – ou, melhor ainda, mais do que nunca: precisamos retomar o debate teórico sobre saúde, doença e conceitos correlatos. É disso que trata este livro.

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Os conceitos de saúde e doença estruturam um campo disciplinar e um âmbito de práticas sociais que tem sido designado como "campo da saúde" (Paim & Almeida Filho, 2000). Trata-se de vasto território cognitivo e praxiológico, abrigo de grande diversidade de saberes, técnicas e práticas que, para além das diferenças epistemológicas e metodológicas, de várias maneiras lidam com os temas fundamentais da saúde, doença e correlatos. Nas várias disciplinas que constituem o chamado campo da saúde, observam-se tímidas tentativas de construir conceitualmente o objeto ‘saúde’, em contraste com o muito que se tem investido no desenvolvimento de modelos teóricos da doença. Não obstante a sua hegemonia no contexto científico e tecnológico atual, ao enfatizar os níveis de análise individual e subindividual, os modelos biomédicos de doença revelam-se insuficientes para abordar a complexidade dos fenômenos de saúde que ocorrem em agregados humanos históricos.
No entanto, surpreende a escassa produção teórica acerca desses elementos teóricos essenciais para a delimitação deste campo. Refletindo sobre esta lacuna, Canguilhem (1990) considera que os médicos (acrescentaríamos: enfermeiros, farmacêuticos, dentistas, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e outros profissionais de saúde) estariam imersos na resolução de problemas oriundos da sua prática cotidiana, sem tempo nem energia para explorar o que se poderia chamar de "pano de fundo" da sua atividade profissional.
Assim, apesar de alguns esforços de produção teórica voltada para questões diagnósticas e propostas terapêuticas — conforme revisado por Murphy (1965), Berlinguer (1988) e Pickstone (2001) — onde são apenas inferidos desdobramentos das noções apontadas, a problematização dos conceitos em si fica relegada a iniciativas isoladas de estudiosos ligados à antropologia, história e filosofia das ciências (Temkin, 1963; Canguilhem, 1966, 1990; Engelhardt, 1975; Margolis, 1976; Good & Good, 1980; Kleinman, 1986; Nordenfelt, 1993, 1995; Levine, 1995; Samaja, 1997, 2004). Buscando recuperar algumas dessas contribuições, muitas vezes restritas a campos específicos do conhecimento, acreditamos que esforços sistemáticos e rigorosos devem ser revisitados, explorados e divulgados.
Em Epidemiologia Sem Números (Almeida Filho, 1989), observei que a ciência epidemiológica não portava qualquer teoria da doença, sendo nesse aspecto subsidiária da Clínica. Naquela ocasião, argumentei que o objeto epidemiológico tem sido construído obedecendo a uma lógica conjuntista, pseudo-probabilística, monótona, longe de fazer justiça à complexidade e riqueza dos fenômenos da saúde.
Em A Clínica e a Epidemiologia (Almeida Filho, 1997a), propus que a estratégia de construção teórica do objeto epidemiológico baseia-se em uma hermenêutica fixa, articulada a matrizes conceituais superadas em outros campos científicos de maior maturidade epistemológica, como por exemplo a doutrina do causalismo restrito. Daí resulta um objeto denominado saúde que de fato refere-se a “doença coletiva”, ainda assim tratado de uma maneira parcial e residual como “o risco e seus fatores”.
Em A Ciência da Saúde (Almeida Filho, 2000a), comentei que nem mesmo a coletivização da doença através do conceito de morbidade logra indiciar “essa coisa chamada saúde”. Não deve causar surpresa, portanto, a ausência de uma “teoria científica da saúde” no campo da Epidemiologia. Não é por acaso que os textos epidemiológicos sobre a saúde mostram-se sinuosos e inconvincentes; os seus formuladores patinam sobre metáforas, inventam maneiras indiretas de falar sobre saúde, porém o seu objeto continua sendo a enfermidade e a morte.

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O presente volume tem como propósito avaliar preliminarmente as condições de possibilidade de uma Teoria da Saúde, reafirmando a importância estratégica da construção de modelos de saúde-doença enquanto objeto científico totalizado e complexo, integrado em uma teoria consistente sobre os processos concretos relativos à vida e à saúde. Com esse objetivo, propomo-nos a explorar algumas das múltiplas dimensões estruturantes do campo científico da saúde: a dimensão biológica, a dimensão sócio-antropológica, a dimensão epidemiológica (populacional) e a dimensão epistemológica. Dado por suposto o reconhecimento da sua importância e fundamentalidade, a dimensão biológica da saúde-doença será aqui contemplada transversalmente, de modo esquemático, quando for preciso esclarecer alguma questão específica dos modelos avaliados e dos argumentos propostos.
Em primeiro lugar, abordaremos aspectos de história etimológica dos termos ‘saúde’, ‘doença’ e correlatos serão, aproveitando para propor um glossário no idioma Português capaz de gerar algum grau de padronização semântica sobre o tema. Em segundo lugar, pretendemos discutir algumas teorias sociológicas de doença-enfermidade-doença que partem de concepções de base biomédica que, não obstante as limitações adiante detalhadas, sem dúvida poderão ser tomadas como ponto de partida para este esforço, dado o caráter dialético e multidimensional da díade saúde-doença. Algumas abordagens sócio-antropológicas articuladoras de teorias de doença serão apresentadas e avaliadas, aproveitando a oportunidade para destacar um tratamento semiológico da saúde-doença, através da teoria dos “signos, significados e práticas de saúde”. a dimensão epidemiológica do conceito Em terceiro lugar, serão analisadas algumas questões epistemológicas em torno do tema Saúde, buscando justificar o seu estatuto de objeto científico. Finalmente, pretende-se colocar em discussão uma proposta de sistematização de distintos conceitos de saúde, como etapa inicial para sua aplicação na construção teórica do campo da Saúde Coletiva.



Este volume incorpora, revisa e amplia conteúdos de uma seqüência de publicações que concluí ao longo desses anos, muitas devidas ao entusiasmo e competência de colaboradores, colegas e ex-alunos. Agradecemos às respectivas editorias a gentil autorização para uso do material.
Eis a lista:

ÚALMEIDA-FILHO, N. Qual o sentido do termo saúde? Cad. Saúde Pública, 16, 300-301, 2000.

ÚALMEIDA-FILHO N. A Ciência da Saúde. São Paulo, HUCITEC, 2000.

ÚALMEIDA-FILHO, N. For a General Theory of Health: preliminary epistemological and anthropological notes. Cad. Saúde Pública, 17, 753-770, 2001.

ÚALMEIDA-FILHO N, COELHO M, PERES M. O Conceito de Saúde Mental. Revista da USP, 43, 100 - 125, 1999.

ÚALMEIDA-FILHO, N., COUTINHO, D. Causalidade, Contingência, Complexidade: o Futuro do Conceito de Risco. Physis, 17(1):95-137, 2007.

ÚALMEIDA-FILHO N. JUCÁ, V. Saúde como ausência de doença: crítica à teoria funcionalista de Christopher Boorse. Ciênc. saúde coletiva, 7, 879-889, 2002.

ÚCOELHO M, ALMEIDA-FILHO N. Normal-patológico, saúde-doença: Revisitando Canguilhem. Physis – Revista de Saúde Coletiva, 9(1):13-36, 1999.

ÚCOELHO M, ALMEIDA-FILHO, N. Conceitos de saúde em discursos contemporâneos de referência científica. Hist. cienc. saude, 9, 315-333, 2002.

ÚPAIM J, ALMEIDA-FILHO N. Saúde Coletiva: “Nova Saúde Pública” ou Campo Aberto a Novos Paradigmas? Rev. Saúde Públ., 32, 299-316, 1998.

ÚPAIM J, ALMEIDA-FILHO N. A Crise da Saúde Pública e a Utopia da Saúde Coletiva. Salvador: Casa da Saúde, 2000.



[1] Todas as traduções de citações dos idiomas inglês, francês ou espanhol são de responsabilidade dos autores deste volume.